O
termo república refere-se, regra geral, a um sistema de governo cujo poder
emana do povo, ao invés de outra origem, como a hereditariedade ou o direito
divino. Ou seja, é a designação do regime que se opõe à monarquia.
No
Brasil, primeiro país de língua portuguesa a proclamar a República, este fato
ocorreu no Rio de Janeiro, então capital do país, em 15 de novembro de 1889,
quando um grupo de militares, liderado pelo marechal Deodoro da Fonseca, depôs
o imperador D. Pedro II através de um golpe de estado. Portanto, durante a vida
da Venerável Serva de Deus Nhá Chica (1808-1895). E ela mesma contou como foi
consultada sobre esse assunto ao Dr. Henrique Monat, médico hidrologista ateu a
quem concedeu uma entrevista por ele anotada em tempo real e depois publicada
no seu livro “Caxambu”, editado na
Casa da Moeda do Rio de Janeiro, em 1894, 5 anos depois.
Veja
o texto numa forma muito próxima do original, com apenas algumas alterações
para facilitar a compreensão atual:
“Tinha-se feito aqui uma eleição do governo,
estavam conversando comigo cinco doutores, juizes de direito, eleitores, juizes
de paz e outros; um deles recebeu um papel do arame candongueiro que tinham
tocado da Côrte; ele ficou branco e me pediu que rezasse a Deus, para ajudar a
pôr o Imperador para fóra. Vieram outros ainda me perguntar se deviam ajudar.
Porque? disse eu, é uma ingratidão, o Imperador é pai de todos. O doutor ficou
abatido, e eu fui fazer uma oração; quando voltei, disse que podiam gritar a
República. Sairam todos gritando. Depois eu soube que o papel de arame
candongueiro era de um tal Dodoro, que queria ser rei. Depois disso, de vez em
quando, lá vem alguem aqui me perguntar se póde gritar a monarchia; e eu digo
que não, mas é porque Nossa Senhora não quer; por mim não, ... eu obedeço; mas
não acho bom este despotismo; os homens agora estão amortecidos, e bulir com os
homens sem por os corações socegados não é direito. Mas Deus escreve por linhas
tortas: se ele mandou gritar a Republica, ele sabe o que fez e o que quer fazer
ainda. Mas os homens parece que estão embrulhando tudo; um carro de lenha já
custa dez mil réis, uma galinha mil réis, um ovo dous cobres e meio, em que
terra já se viu isto? o milho está subindo”.
Dois
esclarecimentos vocabulares são necessários:
1. «papel do
arame candongueiro» era uma anotação da mensagem do telégrafo passado
entre as estações de trêm do Rio e de Baependi;
2. «Dodoro»
era o Marechal Deodoro da Fonseca.
Esse
texto do livro do Dr. Henrique Monat revela coisas muito interessantes sobre a Beata
Nhá Chica e seu entorno. Elenco aqui e comento algumas que me chamam a atenção:
1) Nhá Chica dialogava e gozava de
credibilidade junto aos homens públicos de seu tempo, não só na sua
cidadezinha, mas mesmo na côrte do Rio de Janeiro, então capital do Reino;
2) Esses homens públicos eram também homens
de fé, que pediam suas orações pelas grandes causas da política local e
nacional e acolhiam, ao que parece, os seus conselhos do céu;
3) Nhá Chica tem conhecimento da política
nacional e fala com propriedade do imperador, da república, da monarquia etc.
Não é uma mulher alienada;
4) Ela conhece a implicações sociais das
mudanças política: elenca os preços a subir e se espanta diante de algo
inédito, ou seja, sempre estava atenta á realidade político-social;
5) O que Nossa Senhora lhe diz, Nhá Chica
o interpreta como vontade de Deus, ou seja, sabe que Nossa Senhora não fala por
si mesma e por isso, ela também não fala por si mesma, mas a partir do que
escuta de Deus, por meio de Nossa Senhora, fala. É obediente e por isso digna
de crédito;
6) Nhá Chica reconhece a proclamação da
República como vontade de Deus irrevogável pelo que lhe foi revelado e por isso
não deixa que revertam a história querendo agora proclamar a Monarquia, por
mais que ela tenha uma boa imagem do Imperador deposto;
7)
Nhá Chica faz uma leitura precisa da realidade política do seu tempo que muito
se parece à leitura do mundo político do nosso tempo: “os homens agora estão
amortecidos, e bulir com os homens sem por os corações socegados não é direito”.
Também as pessoas do nosso tempo parecem amortecidas, mas a boa política – como
apresenta o Papa Francisco na recém-lançada encíclica Fratelli Tutti – não se faz por pura agitação ou excitação de
ânimos, mas sim com corações sossegados, conscientes, seguros de estar na
vontade de Deus;
8) Para Nhá Chica, a história é guiada por
Deus por meio dos homens, mas estes correm o risco de "embrulhar" os projetos de Deus e
por isso é preciso estar sempre atenta à realidade político-social, em atitude
de permanente discernimento.
Noutro
relato deste mesmo fato, a Beata Nhá Chica acrescenta um conselho aos
republicanos: “que nenhum mal façam ao
imperador, pois ele é filho de Deus”. Daí depreendemos outra coisa
interessante na concepção política de Nhá Chica:
9) Ela está antenada à política
internacional, pois demonstra saber o destino dado aos imperadores nas
repúblicas recém-proclamadas da Europa: a forca. E aconselha uma forma nova de
fazer política: sem inimigos e vinganças, onde se respeita a dignidade de filho
de Deus dos adversários e lhes garante o pleno exercício de seus direitos.
A
política de Nhá Chica é radicalmente diferente da nossa política hoje!
Com isto, aprendemos mais duas lições com a Beata Nhá Chica. Lições estas hoje tão esquecidas no seio da Igreja e no meio da sociedade com suas tramas políticas: para a Igreja, viver a fé e viver da fé é viver comprometido com a política e com os caminhos da sociedade em que vivemos, sempre em atitude de discernimento, buscando descobrir as possibilidades para que o nosso agir possibilite a vontade de Deus no mundo, e assim, a construção do seu Reino e para a sociedade, fazer uma boa política não significa reduzir a Igreja ao âmbito do templo e da sacristia, desejando que ela “não se meta” na política, mas empenhar-se em agir conforme a vontade de Deus, buscando os conselhos da Igreja, intérprete segura e autorizada do Evangelho, que conta com a permanente assistência do Espírito Santo e ao longo dos séculos tornou-se “perita em humanidades” e por isso tem sempre uma palavra a dizer sobre os problemas e as possíveis soluções para os problemas humanos.
Que a nossa Beata, interceda por nós, por nossas comunidades cristãs e por nossa sociedade em suas organizações políticas, para que nós cristãos renovemos o nosso compromisso político-social com o Reino de Deus e toda a sociedade, o compromisso de realizar a vontade de Deus entre os homens, único caminho de realização para todos, sem exceção, exclusão ou descarte.
Foi um prazer esta leitura. Através a vida da Nhá Chica, o senhor nos trouxe uma necessária reflexão. E como é bom ir aprofundando mais na espiritualidade dessa mulher!
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